Desporto

Triatlo Olímpico de Montemor-o-Velho

Relato de Rogério Araújo

Meus Caros,

Partilho convosco a experiência no meu primeiro Triatlo Olímpico no dia 20 de maio em Montemor-o-Velho (a minha segunda experiência depois da minha participação na prova aberta do Triatlo de Lisboa realizado a 17 de setembro do ano passado).

Antecedentes

Fiz a minha primeira prova de Triatlo o ano transato na Prova Aberta do Triatlo de Lisboa realizado a 17 de setembro. Nessa altura soube logo que o meu objetivo seria cumprir em 2012 um Triatlo Olímpico com uma passagem intermédia por um Sprint.

Ouvi conversas de um Half Iron Man para o Triatlo de Lisboa em maio de 2012, mas sabia que esse era um objetivo incompatível com o tempo disponível e fundamentalmente com a minha lesão no joelho que voltou a atormentar-me nos três últimos meses do ano.

Em janeiro procurei fixar objetivos para o primeiro semestre de 2012 com a marcação de um Triatlo Sprint e de um Olímpico (o meu maior sonho). O Sprint deveria ocorrer no dia 28 de março de 2012 (Campo Maior). Seria alcançável com um pouco mais de esforço e fui reforçando o treino e a carga muscular no joelho à custa de mais horas de bicicleta. Deixei de vez as estatinas para limpar o colesterol e o facto é que aos poucos fui melhorando. No final de janeiro fui intensificando a carga de treino e março chegou mas a prova foi desmarcada. Mais tempo para treinar e uma conversa com o Humberto trouxe o Fernando Feijão e um plano de treino, e mesmo no final de abril (perante a incerteza do calendário) impus-me a fixação do objetivo de participar no Triatlo Olímpico de Montemor-o-Velho antes de passar por qualquer Sprint. O mesmo peso de determinação e de ansiedade. O sonho agora tão perto e tão real.

Nestes quase dois meses dediquei-me mais tempo para cumprir o programa delineado semanalmente ainda que muitas vezes com dias desalinhados, dias sem treino, e treinos fora de horas (das horas apropriadas). Auto impus-me mais empenho e sacrifício (mesmo nos dias em que o biorritmo físico e mental era mais baixo), mais disciplina e organização para encaixar os diversos segmentos na semana e para cumprir as cargas e tempos estabelecidos e, não menos importante, alguma flexibilidade para ajustar o treino de cada segmento sempre que os compromissos profissionais e pessoais assim o exigiam.

Essa autonomia e a liberdade de ajustar o plano de treinos de acordo com as disponibilidades reais no dia foram muito importantes: o treino foi-se modelando ao ritmo das vicissitudes e adversidades dos dias e aos tempos de cada segmento: na piscina, na corrida, na bicicleta, na estrada ou no ginásio, procurei ir encaixando cada prática com a maior naturalidade, obedecendo a decisões de última hora, muitas tomadas no dia, e absorvendo essas alterações como um bem necessário, sem stresses e sem os dramas de não cumprir cronologicamente as datas e horas chave estabelecidas. Só pretendia cumprir no final da semana a frequência, a intensidade e a carga temporal estabelecidas. Todas as decisões eram possíveis e o troley estava no carro sempre preparado para qualquer que fosse a decisão. E assim chegados a meados de maio já conseguia aguentar 3 horas de treino seguidas e as dores do joelho ausentaram-se, aparentemente de vez. Um ano depois!

A Véspera

A aproximação da data da prova trouxe uma crescente ansiedade que foi sendo compensada com o cansaço do treino.

Nas duas últimas semanas e meia antes da prova treinei todos os dias fosse a que horas fosse (não queria desculpas para o que sabia ser uma exigência da prova, mesmo que isso me fosse castigar o físico). E como todos os nossos atos têm suas consequências, quatro dias antes da prova confrontei-me com uma enorme fadiga física o que me deixou um pouco inquieto. Escutei então o corpo e o espírito e decidi-me por descansar voluntariamente a 17. E foi importante fazê-lo pois revigorei-me e senti um acréscimo de energia vital. No dia seguinte treinei apenas 1 hora e meia, mas senti pela primeira vez uma grande certeza nas minhas capacidades.

E chegou a véspera: o dia das questões, das revisões, da concentração fina. O dia em que a ansiedade é gerida de forma variável e em ciclos mas num acumular, e onde cada dúvida é dissipada pela confiança do trabalho feito. A véspera pautada pela necessidade de um descanso efetivo e retemperador, de uma alimentação fundamentalmente rica em hidratos de carbono e uma hidratação intensa ao longo de todo o dia.

A ansiedade desse final de dia foi enorme. O Olímpico invadia-me a mente e os poros. Respirava a sensação do que poderia ser aquele momento da minha iniciação numa competição a sério e acima de tudo do desafio e da superação do meu ser. Na superação que representaria chegar ao fim, bem e sem sofrimento. Sabia acima de tudo que estava preparado para o fazer mas que as responsabilidades reais eram também elevadas. Como em todas as iniciações. Em todos os exames reais. A prova de fogo ali mesmo à nossa frente e a antecipação do conhecimento concreto das nossas forças e também das debilidades que conhecia de cor: na natação, pela falta de treino (apenas a prática uma vez por semana), e na bicicleta, pelo "pavor" de cair se o dia estivesse chuvoso como constava da previsão meteorológica (o trauma das duas quedas de abril mantinha-se muito vivo).

Na noite da prova não consegui dormir mais do que 4 horas. Levantei-me cedo pelas 06h15 e colei-me ao plano de saída que havia delineado com o Manuel Rodrigues que me acompanhou nesta minha estreia oficial no triatlo. Sentia-me confortado pelo facto dele ter enfrentado um Half Iron Man há poucas semanas e ter vencido todos os obstáculos apesar da ausência de treino específico na natação. Esse acontecimento deu-me energia positiva assim como o pensamento constante na vitória do Fernando Serra no seu segundo triatlo em julho de 2011 (precisamente um Olímpico, também sem passagem pelo Sprint) era ao mesmo tempo motivador e compensador.

Lembrei-me de todos os iniciados em 2011, das suas crónicas, dos temores e apreensões, da redenção da linha de chegada e acima de tudo das suas vitórias interiores sobre o desafio pessoal.

A Prova

A viagem foi pautada pela chuva a partir de Leiria. Os prenúncios meteorológicos confirmavam-se e as nuvens adensavam no caminho que nos levava para norte. À chegada conseguimos encontro direto com o Centro de Alto Rendimento de Montemor e fomos efetuar a minha inscrição avulsa. Depois fizemos o reconhecimento do espelho de água: um belíssimo elemento integrado na paisagem plana e aluvial do Mondego que corria paredes meias preparado para provas e treino de canoagem e remo e que agora incorporava as balizas (boias) para a prova que íamos disputar.

A partida da Prova Aberta impediu-nos de colocar o equipamento nos cestos que deixamos para depois. O nervoso miudinho crescia com o aproximar da hora e a chuva recomeçava a cair. Últimos preparativos no carro e avançamos para a credenciação final junto do parque de transição. Optei por levar uma mochila e um saco para proteger o equipamento da chuva. Alguns esquecimentos de permeio (da folha de inscrição e das luvas, levaram-me duas vezes ao carro) e acabei de ser um dos últimos atletas a passar o posto de controlo.

No parque de transição nenhum comissário conseguia identificar o local dos atletas com inscrições de última hora e andamos cerca de 5` literalmente às voltas quando toda a gente já se encontrava equipada com os fatos de natação e muitos outros se agitavam no espelho de água a tomar a temperatura. Estava algum frio, cerca de 13ºc, vento e as nuvens mais carregadas.

Natação (1,5 km)

A 4` do tiro lá consegui entrar dentro de água, fria mas mais suportável do que pensara. O fato pela sua aparente boa estanquicidade, ajudava de sobremaneira. Nadei cerca de 100 metros e regressei à zona da água onde se formavam as linhas de ataque dos cerca de 150 participantes. Olhei para o céu e começava a cair chuva e ao meu lado direito aproximou-se um nadador que sorriu: o Manuel afinal encontrou-me para me dar um último estímulo de confiança.

Olhei para as boias que sinalizavam o caminho com duas voltas de 750 metros. Achei a primeira distante (o pouco treino de piscina transformava este momento no meu maior desafio) e logo de seguida o tiro saiu e com ele um intenso chapinhar. Alguém passou literalmente por cima do meu tronco. Não me afundei nem bebi nenhum pirolito. Mas de repente a pulsação intensificou-se para além do meu controlo. Havia água por todo o lado e a chuva era agora intensa. O Manel ficava um pouco para trás mas ainda descortinava de quando em vez a sua touca branca. Sempre que olhava em frente não conseguia vislumbrar a boia. O pulso teimava em subir e comecei a pensar que não aguentava aquele ritmo ainda que me parecesse que estava dentro da minha cadência de treino, para 32 ou 33 minutos. Procurei sair da confusão, mas não havia atalhos para uma correção de trajetória sem inevitáveis toques e encontrões. Por fim fiquei com a linha de visão sobre a direita limpa e percebi que estava a nadar fora dos limites de zonamento do circuito. Imediatamente um barco com um comissário se aproximou e fez-me gestos para me encostar ao grupo. Vislumbrei a boia (ainda longe) e avancei na sua direção.

Um intenso sufoco ia apertando os pulmões que teimavam em querer responder ao esforço adicional e o contributo do deficit de oxigénio transmitia-se como uma corrente ao coração que corria descompassado. A aproximação à boia condicionou os nadadores que se forçavam num corredor cada vez mais curto e os toques e confusão avolumaram-se. Não consegui aguentar a pressão e acabei por passar a boia em bruços e a ter de parar logo a seguir. Esse foi o meu momento. Um momento da dúvida e perplexidade e por fim de superação. Pensei em tudo com os olhos entre a linha de água e o horizonte negro que teimava em fazer cair água também do céu. Pensei no treino, no sacrifício, no Serra, no seu sonho e no meu sonho, no desafio da vida e nos desafios que nos impomos para nos encontrarmos mais e mais fortes e depois encontrei-me, dentro de uma estranha calmaria, no olho do furacão de emoções e a mente e o corpo fundiram-se num único pensamento: o de que aquele era o meu momento, apenas meu e de que iria completá-lo. E assim foi. Recomecei a natação, e sem dar conta estava na segunda boia e tudo estava estabilizado, no regresso para o ancoradouro passei alguns adversários, e o ganho de confiança foi exponencial. No ancoradouro um obstáculo que não estava previsto: ter de me içar à força de braços para subir, enrolar-me ventralmente no estrado e depois erguer-me no mesmo e lançar-me a correr até à ponta para um novo mergulho no espelho de água e cumprir a segunda volta. Foi uma volta em força e segurança, com todos os elementos físicos e mentais direcionados para a tarefa. Vi-me no meio de um grupo e fomos puxando uns pelos outros. Senti uma enorme confiança e quando saí percebi que havia ainda vários nadadores que se estendiam pelo percurso. Acabei com 34`. Sei que poderia ter feito 33` ou 32` se não fosse a ansiedade inicial. Mas estava cumprido o segmento da ansiedade.

Ciclismo (40 km)

A saída da água voltou a ser dura (ter de me içar para cima do ancoradouro), mas a corrida para o parque correu sem qualquer percalço.

Chovia bastante. Coloquei a bicicleta na barra de suporte, e tirei os óculos e a touca. Hidratei-me e comi qualquer coisa. Vários atletas saiam mais rápido mas não me importei. Tirei o fato (com alguma dificuldade) e vesti o equipamento para o ciclismo (as luvas estavam encharcadas e teimei em vesti-las - nunca mais levarei luvas para uma prova). Demorei tempo a mais (tenho a certeza). Mas o que queria era terminar em boas condições.

Após o controlo do chip na alcatifa saí bem do hangar de apoio à organização e fui fustigado pelo vento e pela chuva. Senti frio. Encaixei os sapatos e ajustei o carreto das mudanças. Arranquei bem e depressa me esqueci dos elementos. Concentrei-me no andamento e no piso (muitas folhas e ramos). O grupo da liderança com cerca de 20 atletas acabou por me passar na reta antes de chegar ao perímetro da vila. Nem tentei ir com eles. Desconhecia o circuito e sabia que na parte urbana teria de ter cuidado com a famosa descida que todos me tinham avisado. Não queria cair. O piso estava encharcado por veios e poças de água e havia folhas e ramos partidos por todo o lado.

Pouco depois veio a subida que se revelou mais longa e penosa do que pensara, mas a primeira passagem correu bem. Fiz a descida e a curva cega abusando do travão mas percebi que o piso rugoso segurava os pneumáticos slick. Apontei o andamento e entreguei-me a conhecer o resto do circuito que se revelou quase plano.

No final da primeira volta o Manuel passou-me, gritámos um ao outro e concentrei-me ainda mais. Depois passei a segunda e a terceira volta e só então me apercebi que não tinha colocado o relógio em modo de ciclismo. Mas já estava a meio do segmento e não valia a pena começar o registo agora. Procurei referências para melhorar o andamento agora que a chuva tinha parado e beneficiei de um competidor que estava uma volta à frente. Colei-me. Confirmei com ele o total das seis voltas e nessa altura compreendi que ia conseguir chegar bem ao final. O vento amainou e o sol despontava a espaços. O cenário conjugava-se para um final de segmento sem quebras.

Cerca da quinta volta perdi a noção do tempo (e das voltas). Completei o circuito de ciclismo por instinto (não tenho a certeza das voltas que fiz), tendo entrado quando entendi seguro. Fiz 01h31 e continuava física e mentalmente forte.

Corrida (10 km)

A transição para a corrida foi bastante rápida. Curiosamente iniciei as primeiras centenas de metros sem reflexo de fadiga muscular nem o efeito trôpego, bamboleante, quase ébrio, das pernas e tratei de afinar o ritmo para a primeira volta sem ousar entrar rápido.

De imediato procurei o abastecimento, que estava cerca de 100 metros após a meta, e hidratei-me (fi-lo sempre aí a cada uma das 4 voltas). Encontrei logo a seguir o Manuel que me levava quase 1 volta de avanço. Estabeleci um critério de passada e percebi que me conseguia manter próximo dos 4`45`` por quilómetro.

As voltas eram monótonas mas estava com um ritmo constante e continuei a marcar a passada. A pulsação mantinha-se no limite das 150/155 pulsações por minuto. Não havia esforço e apenas senti alguma dor muscular no final da terceira volta.

Foi por essa altura que me senti desfrutar esse momento de eleição, da proximidade do sucesso e fui vivendo cada instante como se fosse um dos melhores momentos da minha vida. Estava a correr sem sacrifício. As minhas faculdades bem dimensionadas para a prova agora quase concluída, e isso enchia-me de orgulho.

Apanhei um outro atleta a 200 metros da meta e decidimos cortá-la juntos. Acabei com 48`.

Acabei com o pensamento na família e no enorme exemplo do Fernando Serra. Agora também era triatleta. Cumprindo as condições que havia estabelecido.

Agora já poderia dizer Obrigado ao Humberto, ao Fernando Feijão, ao João Lucas Coelho, ao Pedro Caeiro, ao Pedro Quaresma, à Sónia, ao Manuel Rodrigues, e a Todos com quem tive o privilégio de partilhar os primeiros passos nesta modalidade tão exigente para a mente e para o corpo e tão recompensadora. O Meu Obrigado a Todos.

Publicado em 15/06/2012